Ciência Hoje On-line
Por: Pedro Elias Marques, André Gustavo Oliveira e Gustavo Batista Menezes
O uso abusivo e indiscriminado de remédios pela população é um problema mundial, que responde por várias internações e mortes. As mesmas substâncias que deveriam tratar ou trazer alívio, quando usadas em excesso, podem intoxicar o corpo e levar à falência de órgãos vitais, como o fígado.
Substâncias que deveriam tratar ou trazer alívio, quando ingeridas em excesso, podem causar graves danos ao fígado, órgão onde elas são processadas. (foto: Alaa Hamed/ Sxc.hu)
O ser humano tem sido desafiado pelas doenças desde o início de sua história,
e elas provavelmente o forçaram a buscar alternativas para se manter vivo e
saudável. Ainda não se sabe se os humanos primitivos buscaram os ‘medicamentos’
na natureza conscientemente ou se estes foram apresentados de forma aleatória a
eles nas refeições que obtinham de plantas e ervas, por exemplo. Nossa
capacidade de perceber, entender e memorizar os primeiros princípios ativos
obtidos de recursos naturais foi crucial para o desenvolvimento da farmacologia
e da terapêutica modernas.
Os relatos escritos mais antigos dessas práticas médicas têm mais de 3,5 mil
anos e estão em documentos do antigo Egito conhecidos como papiros médicos,
entre os quais se destacam o papiro de Smith e o papiro Ebers, preservados em
museus europeus. Considerados os primeiros tratados médicos, esses papiros
serviram de guia para as prescrições por muito tempo.
O número de viciados em medicamentos é maior que o de
usuários de cocaína, heroína e ecstasy somados.
Hoje, o panorama é bem diferente: somos constantemente bombardeados por
alternativas de medicamentos para tratar quase todos os problemas que possamos
ter. Embora em todo o mundo sejam adotadas medidas importantes visando
restringir o acesso e conscientizar a população para os riscos, os medicamentos
mais ‘simples’ podem ser adquiridos com extrema facilidade, muitas vezes sem
receita médica ou até pela internet.
Esses medicamentos de fácil acesso são utilizados para tratar dores de
cabeça, resfriados, cólicas, dores musculares e problemas de saúde de menor
gravidade. Mas são justamente esses fármacos os protagonistas de um quadro
grave: o da automedicação e intoxicação medicamentosa.
O uso abusivo e não supervisionado de medicamentos é responsável por várias
internações e mortes por ano em todo o mundo. Em 2010, a Junta Internacional de
Fiscalização a Entorpecentes (Jife), órgão da Organização das Nações Unidas
(ONU), declarou que o uso abusivo de remédios é um problema mundial, e que o
número de viciados em medicamentos é maior que o de usuários de cocaína, heroína
e
ecstasy somados.
- O papiro de Smith, encontrado no
Egito, tem cerca de 3,5 mil anos e é um dos mais antigos documentos sobre
procedimentos cirúrgicos e medicamentos conhecidos. (foto: Wikimedia
Commons)
Os dados são ainda mais preocupantes: o Centro de Controle e Prevenção de
Doenças (CDC), agência federal dos Estados Unidos, revelou que triplicou naquele
país, de 1990 a 2008, o número de mortes por
overdose de analgésicos.
No Brasil, para que se tenha uma ideia do volume de remédios consumidos pela
população, mais de 92 milhões de comprimidos de aspirina (marca comercial mais
famosa do analgésico ácido-acetilsalicílico) foram consumidos em 2009. No mundo,
são vendidas cerca de 216 milhões de unidades por dia.
Vale lembrar que esses números dizem respeito a apenas um tipo de analgésico,
e de uma só marca, mas permitem ter uma noção da quantidade absurda que seria
atingida somando-se todos os remédios consumidos rotineiramente, como os que
controlam a pressão arterial, os antibióticos, os redutores de colesterol e
vários outros.
Prejuízos ao fígado
Quem ‘paga a conta’ nessa história é o fígado. Tudo porque grande parte do
que é absorvido pelo sistema gastrointestinal humano – aquilo que comemos e
bebemos – é drenado diretamente para o fígado pela veia porta, antes mesmo de
atingir a circulação geral. Uma vez no fígado, o sangue é dirigido para os
lóbulos hepáticos, pequenos grupos de células existentes no órgão, fluindo por
capilares especializados. Esses minúsculos vasos sanguíneos facilitam o contato
entre a corrente sanguínea e os hepatócitos, células com múltiplas funções que
compõem em torno de 70% a 80% do tecido hepático.
É justamente esse contato íntimo entre o sangue e os hepatócitos que permite
ao fígado desempenhar a que é considerada sua principal função: a
biotransformação de toxinas e drogas, para ‘limpar’ o organismo. As células do
tecido hepático contêm enorme variedade de enzimas que transformam essas
substâncias nocivas em moléculas mais solúveis em água, para facilitar sua
inativação e excreção.
A incidência de doenças hepáticas causadas por drogas ou
toxinas tem aumentado bastante em vários países, inclusive no Brasil
As funções do fígado, porém, vão muito além da desintoxicação dQo corpo. Esse
órgão pode desempenhar até centenas de funções diferentes, e a maioria cabe aos
hepatócitos. Entre essas funções estão a remoção dos glóbulos vermelhos
envelhecidos da circulação (hemocaterese), o metabolismo de lipídios,
carboidratos e proteínas, o armazenamento de vitaminas e alguns sais minerais e
a síntese de fatores de crescimento (substâncias que estimulam a proliferação e
a diferenciação das células) e proteínas do plasma sanguíneo (essenciais em
muitos processos orgânicos).
Você leu apenas o início do artigo publicado na
CH 302.
Pedro Elias Marques
André Gustavo Oliveira
Gustavo Batista
MenezesLaboratório de Imunobiofotônica,
Departamento de
Morfologia,
Universidade Federal de Minas Gerais
Referência
Quando a cura passa a matar. Disponível em
http://cienciahoje.uol.com.br/revista-ch/2013/302